Todos os outros protetores já haviam se desligado
de seus médiuns, em razão do adiantado da hora. Além disso, não havia mais
pessoas para serem atendidas. Fora uma noite igual a tantas outras, em que o
salão se enchia de pessoas famintas, em busca do pão da fé e do conselho amigo
dos pretos velhos. Vovó Benta, no entanto, continuava incorporada em seu
aparelhinho, batendo o pé no chão e cantarolando. O cambono-chefe se dirigiu a
ela, informando delicadamente que os atendimentos haviam se encerrado,
autorizando-a a "subir".
- Salve, camboninho, nega véia sabe que o
terreiro esvaziô, mas tô aqui esperando aquela zi fia que tá chegando na
portera!
Olhando para a porta, o cambono avistou uma
senhora chegando, e, mesmo sem falar nada à preta velha, seus pensamentos
reprimiram o tipo de conduta que se refletia na figura daquela mulher. Quando
estavam prestes a encerrar o trabalho, ela chegou escondendo o rosto atrás de
um xale. "Ainda se fosse alguém decente, mas essa criatura! Prostitui-se
nas outras noites e vem até aqui se fazer de santa!", pensava ele.
Vovó Benta captou as ondas de pensamento do
cambono e apenas sorriu, pensando sobre como a vida é uma caixinha de
surpresas.
- Saravá, zi fia! Como suncê tem passado?
- Minha mãe, minhas noites têm sido um terror. Os
pesadelos não me deixam dormir. Durante o dia tenho batido perna atrás de
emprego, mas, a senhora sabe, minha fama faz todas as portas se fechem.
- Não desanime, filha. Se você decidiu realmente
que quer mudar sua vida, precisará de persistência e fé. Não desista de
procurar. Há um lar onde a dor está chegando; lá estão precisando de alguém de
coração grande, com paciência e vontade de trabalhar. Nesse tal lugar, enquanto
a filha ganha seu pão honestamente com seu trabalho, vai poder ressarcir os
erros de um passado que desconhece e do qual fugiu, padecendo até hoje.
- Não quero desistir, mas são muitas as portas
que se fecham para mim. Às vezes, penso que não vale a pena mudar de vida.
- A escolha é sua, por isso o Grande Pai deu-nos
o livre-arbítrio. No entanto, esta preta velha vai dizer para a filha que, sem
subir e descer a montanha, sem atravessar o lodaçal e sem passar pelas águas
turbulentas do rio, ninguém chega até a porta da Casa do Pai, a única que não
se fecha para nenhum dos filhos. Prova disso é o fel que o próprio Cristo Jesus
precisou provar antes de se elevar aos Céus.
- Minha mãezinha, ontem mesmo vim a esta casa me
oferecer para limpá-la durante o dia, como forma de começar a fazer caridade,
porém me aconselharam a me restringir a vir às sessões de caridade, pois não
ficaria bem uma "mulher da vida" limpar a casa dos sagrados orixás.
- Mais uma vez o livre-arbítrio, filha. Jesus
recebeu Maria Madalena e permitiu que ungisse seus pés, porque viu seu coração;
Ele não se limitou a julgar seus atos. Continue insistindo, filha, mostre que
sua intenção é boa, peça uma chance de mostrar seu trabalho.
Abençoando a mulher sofrida, de coração e forças
já abatidos pelas noites de insônia dos tantos anos vividos em prostíbulos,
Vovó Benta deu a ela um patuá e pediu que o usasse em sua bolsa, acreditando
que estaria protegida e amparada por todos os orixás. Despediu-se, quando a
corrente mediúnica, apressada, já cantava o ponto de encerramento.
A preta velha, limpando as energias de seu
aparelho com um galho de arruda, chorou sentida pela falta de entendimento que
alguns filhos ainda apresentam sobre o real significado da caridade. Depois de
largá-lo, permaneceu ainda ali com os outros espíritos que haviam prestado
serviço naquele templo e que agora, de mãos dadas, cantavam e dançavam ao redor
dos médiuns, reequilibrando suas energias com a magia do som e do movimento.
Alheios a todo o benefício que recebiam dos
bondosos pretos velhos, alguns médiuns bocejavam, outros recostavam-se na
parede, sentindo-se cansados; outros ainda pensavam no programa de televisão
que estavam perdendo, graças "àquela senhora" que sempre atrasava o
encerramento dos trabalhos.
A semana corria, e os acontecimentos andavam
conforme a prescrição de uma força maior que a dos homens. Num entardecer, uma
mulher grávida, com fortes dores do parto, tentou chamar o marido, que estava
no trabalho, quando a bolsa d'água estourou, iniciando forte sangramento.
Alarmada pelo barulho, a filha adolescente saiu
do quarto e, vendo a mãe no chão, desmaiada, saiu para a rua gritando e pedindo
socorro. Uma mulher passava por ali, cabisbaixa e desanimada, mas não hesitou
em entrar correndo e atender a mulher, cuja criança já ensaiava nascer. Só teve
tempo de lavar rapidamente as mãos e pedir à menina que providenciasse toalhas
e água quente; fez o parto ali mesmo.
Não se tratava de acaso, pois ela fora adestrada
pela vida para realizar partos caseiros; muitos deles, antes da hora. Sabia
como agir e salvou a criança, mas, sentindo que a mãe ofegava, ligou para o
hospital pedindo socorro. Quando o marido chegou, assustou-se ao ver a
prostituta dentro de sua casa, com Um bebê no colo. Os fatos foram relatados,
e, correndo para o hospital, deparou-se com a esposa em estado gravíssimo,
tendo desencarnado depois de poucas horas.
Enlouquecido, passou a culpar o parto mal-feito,
mesmo diante da afirmação médica de que a esposa havia sofrido uma parada
cardíaca por problemas de pressão alta não tratados durante a gravidez.
O homem saiu do hospital disposto a achar um
culpado. Enfurecido, quando entrou no quarto para expulsar a prostituta,
assustou-se ao ver que ao seu lado estava uma preta velha sorridente. Esfregou
os olhos e, olhando novamente, viu a mulher entregando-lhe a criança e saindo.
Que seria dele?
Os vizinhos movimentaram-se nos primeiros dias,
para ajudar a família, mas depois de um mês cada um voltou a cuidar de sua
vida. Na gira seguinte, de preto velho, o cambono-chefe ajoelhava-se chorando
diante de Vovó Benta, com uma criança nos braços. O que deveria fazer?
- Zi fio, por que tanta tristeza? Esta criança é
uma bênção!
- Mas não tem mãe! - exclamava ele choroso.
- Não tem mãe, mas tem avó.
- Não, minha mãe, as duas avós, tanto a materna
quanto a paterna, também já desencarnaram.
- Zi fio deve aguardar. Aquela que é a avó do
"curumim" está chegando.
- O cambono estremeceu ao ver "aquela
mulher"novamente, justamente ali.
- Avó de meu filho?
- O camboninho esquece que foi ela quem o salvou?
Se serviu de mãe, poderá servir de avó. Tem idade e experiência para tanto.
- Mas não tem moral!
- Zi fio, essa moral de que fala é um chapéu
vistoso que dá imponência quando convém e que serve para esconder a cara quando
a vergonha chega. Larga de tanto orgulho e contrata essa filha que tanto
precisa de um trabalho para cuidar do filho que ela mesmo fez vir ao mundo.
Naquela noite, durante o sono, o cambono foi
levado a outras paragens do mundo astral. Dos quadros que presenciou, foi
trazida à sua mente física, pela manhã, uma forte vontade, senão necessidade,
de chamar "aquela mulher" para ser babá de seu filho. E assim o fez.
Ao pedir seus documentos para o devido registro,
surpreendeu-se com seu verdadeiro nome, pois a conhecia por Madame Zulu, seu
nome de guerra.
Aos poucos, foi cultivando simpatia pela mulher,
que demonstrava muito carinho pela criança e muito esmero nos trabalhos
domésticos. Um dia, resolveu pedir que lhe contasse sua vida, pois estava
curioso para saber o que leva uma mulher a se prostituir.
Ela passou então a lhe contar que havia conhecido
um rapaz rico que a engravidara, quando ainda era muito jovem. Por impedimento
das famílias, não puderam ficar juntos. Durante toda a gravidez fora obrigada a
se esconder, e, quando o filho nasceu, sumiram com ele. Sua dor havia sido tão
grande que saiu pelo mundo à procura do bebê, sem nunca ter logrado êxito, até
que, desanimada e desacreditada, jogou-se naquela casa e lá passou a viver de
prazeres ilusórios. Falou de suas decepções, de sua tristeza e da saudade que
sentia do filho que mal conhecera.
O coração daquele homem agora disparava, porque
algo muito forte gritava dentro dele. Perguntou por datas, nomes, locais; não
havia mais dúvidas: era ela. "Aquela mulher" era sua mãe. Entre
soluços, jogou-se aos seus pés, contando sua história de abandono e carência
materna no orfanato.
Naquela noite, lá no terreiro, um cambono e uma
ex-prostituta, reconhecidamente mãe e filho, ajoelhados aos pés da preta velha,
choravam emocionados, apresentando, respectivamente, o filho e o neto para que
fosse abençoado.
- Camboninho entende agora porque a preta velha
ficava esperando até altas horas para que a filha chegasse no terreiro?
Entende porque se diz que "Deus escreve
certo por linhas tortas"? Esse pequeno ser que desfruta agora de vosso
amor tem uma história também, mas, seja ela qual for, prometam amparálo e
amá-lo, tanto quanto forem capazes vossos corações, para que a justiça se
cumpra.
Talvez um dia venham a descobrir que, em vida
passada, o cambono e sua mãe haviam sido pais inconseqüentes daquele ser que
ali renascia e que, por isso, havia se perdido.
Tudo o que mais abominamos faz parte de nós. A
vida sempre nos coloca diante de espelhos, os quais, independentemente das
máscaras que usarmos, vão sempre refletir nossa verdadeira imagem.
Preta velha já foi, já foi para Aruanda.
Vovó Benta
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