04 abril 2018

Discriminação - Livro Samadhi, de Ramatis



Todos os outros protetores já haviam se desligado de seus médiuns, em razão do adiantado da hora. Além disso, não havia mais pessoas para serem atendidas. Fora uma noite igual a tantas outras, em que o salão se enchia de pessoas famintas, em busca do pão da fé e do conselho amigo dos pretos velhos. Vovó Benta, no entanto, continuava incorporada em seu aparelhinho, batendo o pé no chão e cantarolando. O cambono-chefe se dirigiu a ela, informando delicadamente que os atendimentos haviam se encerrado, autorizando-a a "subir".
- Salve, camboninho, nega véia sabe que o terreiro esvaziô, mas tô aqui esperando aquela zi fia que tá chegando na portera!
Olhando para a porta, o cambono avistou uma senhora chegando, e, mesmo sem falar nada à preta velha, seus pensamentos reprimiram o tipo de conduta que se refletia na figura daquela mulher. Quando estavam prestes a encerrar o trabalho, ela chegou escondendo o rosto atrás de um xale. "Ainda se fosse alguém decente, mas essa criatura! Prostitui-se nas outras noites e vem até aqui se fazer de santa!", pensava ele.
Vovó Benta captou as ondas de pensamento do cambono e apenas sorriu, pensando sobre como a vida é uma caixinha de surpresas.
- Saravá, zi fia! Como suncê tem passado?
- Minha mãe, minhas noites têm sido um terror. Os pesadelos não me deixam dormir. Durante o dia tenho batido perna atrás de emprego, mas, a senhora sabe, minha fama faz todas as portas se fechem.
- Não desanime, filha. Se você decidiu realmente que quer mudar sua vida, precisará de persistência e fé. Não desista de procurar. Há um lar onde a dor está chegando; lá estão precisando de alguém de coração grande, com paciência e vontade de trabalhar. Nesse tal lugar, enquanto a filha ganha seu pão honestamente com seu trabalho, vai poder ressarcir os erros de um passado que desconhece e do qual fugiu, padecendo até hoje.
- Não quero desistir, mas são muitas as portas que se fecham para mim. Às vezes, penso que não vale a pena mudar de vida.
- A escolha é sua, por isso o Grande Pai deu-nos o livre-arbítrio. No entanto, esta preta velha vai dizer para a filha que, sem subir e descer a montanha, sem atravessar o lodaçal e sem passar pelas águas turbulentas do rio, ninguém chega até a porta da Casa do Pai, a única que não se fecha para nenhum dos filhos. Prova disso é o fel que o próprio Cristo Jesus precisou provar antes de se elevar aos Céus.
- Minha mãezinha, ontem mesmo vim a esta casa me oferecer para limpá-la durante o dia, como forma de começar a fazer caridade, porém me aconselharam a me restringir a vir às sessões de caridade, pois não ficaria bem uma "mulher da vida" limpar a casa dos sagrados orixás.
- Mais uma vez o livre-arbítrio, filha. Jesus recebeu Maria Madalena e permitiu que ungisse seus pés, porque viu seu coração; Ele não se limitou a julgar seus atos. Continue insistindo, filha, mostre que sua intenção é boa, peça uma chance de mostrar seu trabalho.
Abençoando a mulher sofrida, de coração e forças já abatidos pelas noites de insônia dos tantos anos vividos em prostíbulos, Vovó Benta deu a ela um patuá e pediu que o usasse em sua bolsa, acreditando que estaria protegida e amparada por todos os orixás. Despediu-se, quando a corrente mediúnica, apressada, já cantava o ponto de encerramento.
A preta velha, limpando as energias de seu aparelho com um galho de arruda, chorou sentida pela falta de entendimento que alguns filhos ainda apresentam sobre o real significado da caridade. Depois de largá-lo, permaneceu ainda ali com os outros espíritos que haviam prestado serviço naquele templo e que agora, de mãos dadas, cantavam e dançavam ao redor dos médiuns, reequilibrando suas energias com a magia do som e do movimento.
Alheios a todo o benefício que recebiam dos bondosos pretos velhos, alguns médiuns bocejavam, outros recostavam-se na parede, sentindo-se cansados; outros ainda pensavam no programa de televisão que estavam perdendo, graças "àquela senhora" que sempre atrasava o encerramento dos trabalhos.
A semana corria, e os acontecimentos andavam conforme a prescrição de uma força maior que a dos homens. Num entardecer, uma mulher grávida, com fortes dores do parto, tentou chamar o marido, que estava no trabalho, quando a bolsa d'água estourou, iniciando forte sangramento.
Alarmada pelo barulho, a filha adolescente saiu do quarto e, vendo a mãe no chão, desmaiada, saiu para a rua gritando e pedindo socorro. Uma mulher passava por ali, cabisbaixa e desanimada, mas não hesitou em entrar correndo e atender a mulher, cuja criança já ensaiava nascer. Só teve tempo de lavar rapidamente as mãos e pedir à menina que providenciasse toalhas e água quente; fez o parto ali mesmo.
Não se tratava de acaso, pois ela fora adestrada pela vida para realizar partos caseiros; muitos deles, antes da hora. Sabia como agir e salvou a criança, mas, sentindo que a mãe ofegava, ligou para o hospital pedindo socorro. Quando o marido chegou, assustou-se ao ver a prostituta dentro de sua casa, com Um bebê no colo. Os fatos foram relatados, e, correndo para o hospital, deparou-se com a esposa em estado gravíssimo, tendo desencarnado depois de poucas horas.
Enlouquecido, passou a culpar o parto mal-feito, mesmo diante da afirmação médica de que a esposa havia sofrido uma parada cardíaca por problemas de pressão alta não tratados durante a gravidez.
O homem saiu do hospital disposto a achar um culpado. Enfurecido, quando entrou no quarto para expulsar a prostituta, assustou-se ao ver que ao seu lado estava uma preta velha sorridente. Esfregou os olhos e, olhando novamente, viu a mulher entregando-lhe a criança e saindo. Que seria dele?
Os vizinhos movimentaram-se nos primeiros dias, para ajudar a família, mas depois de um mês cada um voltou a cuidar de sua vida. Na gira seguinte, de preto velho, o cambono-chefe ajoelhava-se chorando diante de Vovó Benta, com uma criança nos braços. O que deveria fazer?
- Zi fio, por que tanta tristeza? Esta criança é uma bênção!
- Mas não tem mãe! - exclamava ele choroso.
- Não tem mãe, mas tem avó.
- Não, minha mãe, as duas avós, tanto a materna quanto a paterna, também já desencarnaram.
- Zi fio deve aguardar. Aquela que é a avó do "curumim" está chegando.
- O cambono estremeceu ao ver "aquela mulher"novamente, justamente ali.
- Avó de meu filho?
- O camboninho esquece que foi ela quem o salvou? Se serviu de mãe, poderá servir de avó. Tem idade e experiência para tanto.
- Mas não tem moral!
- Zi fio, essa moral de que fala é um chapéu vistoso que dá imponência quando convém e que serve para esconder a cara quando a vergonha chega. Larga de tanto orgulho e contrata essa filha que tanto precisa de um trabalho para cuidar do filho que ela mesmo fez vir ao mundo.
Naquela noite, durante o sono, o cambono foi levado a outras paragens do mundo astral. Dos quadros que presenciou, foi trazida à sua mente física, pela manhã, uma forte vontade, senão necessidade, de chamar "aquela mulher" para ser babá de seu filho. E assim o fez.
Ao pedir seus documentos para o devido registro, surpreendeu-se com seu verdadeiro nome, pois a conhecia por Madame Zulu, seu nome de guerra.
Aos poucos, foi cultivando simpatia pela mulher, que demonstrava muito carinho pela criança e muito esmero nos trabalhos domésticos. Um dia, resolveu pedir que lhe contasse sua vida, pois estava curioso para saber o que leva uma mulher a se prostituir.
Ela passou então a lhe contar que havia conhecido um rapaz rico que a engravidara, quando ainda era muito jovem. Por impedimento das famílias, não puderam ficar juntos. Durante toda a gravidez fora obrigada a se esconder, e, quando o filho nasceu, sumiram com ele. Sua dor havia sido tão grande que saiu pelo mundo à procura do bebê, sem nunca ter logrado êxito, até que, desanimada e desacreditada, jogou-se naquela casa e lá passou a viver de prazeres ilusórios. Falou de suas decepções, de sua tristeza e da saudade que sentia do filho que mal conhecera.
O coração daquele homem agora disparava, porque algo muito forte gritava dentro dele. Perguntou por datas, nomes, locais; não havia mais dúvidas: era ela. "Aquela mulher" era sua mãe. Entre soluços, jogou-se aos seus pés, contando sua história de abandono e carência materna no orfanato.
Naquela noite, lá no terreiro, um cambono e uma ex-prostituta, reconhecidamente mãe e filho, ajoelhados aos pés da preta velha, choravam emocionados, apresentando, respectivamente, o filho e o neto para que fosse abençoado.
- Camboninho entende agora porque a preta velha ficava esperando até altas horas para que a filha chegasse no terreiro?
Entende porque se diz que "Deus escreve certo por linhas tortas"? Esse pequeno ser que desfruta agora de vosso amor tem uma história também, mas, seja ela qual for, prometam amparálo e amá-lo, tanto quanto forem capazes vossos corações, para que a justiça se cumpra.
Talvez um dia venham a descobrir que, em vida passada, o cambono e sua mãe haviam sido pais inconseqüentes daquele ser que ali renascia e que, por isso, havia se perdido.
Tudo o que mais abominamos faz parte de nós. A vida sempre nos coloca diante de espelhos, os quais, independentemente das máscaras que usarmos, vão sempre refletir nossa verdadeira imagem.
Preta velha já foi, já foi para Aruanda.

Vovó Benta

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